terça-feira, 3 de agosto de 2010

Sestiada

Inverno meridional de 2010. A imensa janela que todas as tardes ilumina várias mesas com computadores, inclusive a minha, faz da sala onde eu trabalho um imenso aquário assistido por todos que passam naquela pacata rua do bairro Moinhos de Vento. Em troca, a mesma janela dá aos habitantes deste viveiro humano uma paisagem verdadeiramente inspiradora. A rua vista lá de dentro da sala possuí casas e prédios de poucos andares, que parecem estar ali desde bem antes de eu nascer, visto pela pintura gasta e pelas bases feitas artesanalmente por pedras-ferro. As árvores aparentam estar nas calçadas ao mesmo tempo das moradias, a julgar pelo seu imenso porte e pelo estado do caule. E estas árvores, quando bem-humoradas, decoram as calçadas com suas folhas, e esta cena vai ficar mais bonita quando chegar o fim de setembro e os deuses acharem que já estamos passando frio por tempo demais. Pra completar, o sol de revesgueio, marca registrada dos meses gelados do hemisfério sul, esquenta tudo com a costumeira má vontade do meio do ano.
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Esse cenário me faz lembrar de anos que o meu único compromisso era o colégio e que eu tinha as tardes livres pra fazer o que eu bem entendia - logicamente depois de lavar a louça do almoço. Se não eram os amigos que faziam eu sair de casa, a cama reclamava e pedia atenção. Se insinuava, me pressionava, e eu sem saída me entregava aos seus lencóis até a hora da Malhação. Bons tempos. Mas eu não assistia Malhação. Juro.
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De onde será que eu arranjei toda essa intimidade com a cama, no auge da minha adolescência e com aquele sol lá fora? Creio que herdei do mesmo careca que aprendi a fazer piadas toscas, a assar churrasco e a sorrir quando o mundo desabava. Meu pai.
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Uma das lembranças da nossa convivência diária que tenho (faz um ano e meio que não moramos mais juntos) é do seu sono após o almoço. Clássico era o domingo que eu assistia Fórmula 1 com ele e depois acompanhava seu ritual à frente da churrasqueira, aproveitando para beliscar em pequenas quantidades os melhores mal-passados da minha vida. Ele comandava o fogo e a carne com o sorriso de um Joel Santana. E após aqueles shows com espetos, íamos dar aquela "sestiada", não importava o que houvesse acontecendo. Antes do futebol das 16h na TV, era aquela roncada básica. "Pra descer a carne mais rápido", dizia ele.
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Quando era verão, era legal. Com ele, aprendi a dormir no melhor estilo "mendigo". Pra aguentar aquelas tardes quentes, ele pegava um travesseiro ou uma almofada e atirava no chão cru amadeirado. Ali tava a cama. Deitávamos as costelas no frio parquet, cada um no seu respectivo quarto, e ali éramos feliz por uma hora ou um pouco mais. Quando não fazia tão calor, um tapete se fazia de colchão. Eram dois cachorros dormindo dentro de casa.
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Outra mania que tenho orgulho de ter pegado dele foi a de bocejar aos berros dentro de casa. Aprendi com o seu Jassy que bocejar em silêncio, mesmo sendo má-educação, era sem graça. Então a qualquer hora do dia ou da noite que estávamos dentro de casa, era aquela lamúria que contaminava rápido. O bocejo gritado bem de alto virou uma demonstração explícita de como era bom ter sono e a sorte de estar em casa, à vontade.
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Coincidentemente, tive estas percepções justamente na semana do dia-dos-pais, ainda na dúvida sobre o presente que lhe darei. Pensei em fazer um churrasco com ele, pra depois dar largos e sonoros bocejos e depois dormir na tarde de domingo no chão de sua casa atual. Mas aí isto seria um presente muito mais pra mim do que pro velho. Aí não vale.

domingo, 1 de agosto de 2010

OI, TIO! - décimo capítulo

Herón estava tão sem iniciativas quanto Rodrigo, que apenas acompanhava boquiaberto a gravação. Aquilo seria para o making of, mas as cenas mereciam dignamente ser inseridas no filme propriamente dito. Sophia não se intimidara nem um pouco com a presença do câmera, nem com o ambiente em que estava, entre refletores, fios e o ar gélido do estúdio. O que ela menos sentia naquela hora era frio, praticamente sobre o corpo de Herón, que nada resistia às suas investidas, mas parecia estar impressionado com a provocante audácia da garota. Enquanto ela fazia percorrer as pequenas mãos sobre seu corpo, ele misturava loucuras em sua cabeça, todos os pensamentos possíveis entre o tesão e a preocupação de estar fazendo algo errado. Pensou em divórcio, no começo de um caso com Sophia, na descoberta da polícia...ele poderia até ser preso! Mas num impulso, como se ele estivesse jogando toda a sua vida aos diabos, fez-se gerar apenas um pensamento na sua cabeça, aquele que pelo menos uma vez na vida você já teve. FODA-SE!

Tudo isso ocorria em frações de segundo, algo que o tempo não podia determinar, um best-seller erótico em slow motion. O relógio parecia ter decidido estacionar para registrar uma cena tão estarrecedora, mas também extremamente natural. Os dois pareciam ter uma intimidade secular, mas o que acontecia na frente do câmera-man era puro instinto. A direção do toque, a pressão do beijo, a intensidade da respiração, tudo se encaixava perfeitamente sobre aquele colchão. Até que...

- PAI!

Ninguém pode explicar qual sensação tomou conta de cada um que estava dentro do estúdio quando Maria Eduarda gritara na porta. Sua expressão era de choque, acompanhada da respiração ofegante pela recente corrida. Inácio vinha correndo atrás, fulo, imaginando qual seria o próximo desastre para que toda a sua idéia fosse por água abaixo.